O canastra resiste à industrialização

por Carlos Alberto Dória

Uma pradaria eternamente lambida pela brisa silenciosa estende-se, monótona, por mais de 70 quilômetros, no alto da Serra da Canastra, onde nasce o rio São Francisco. Poucos vestígios de ocupação humana nesse lugar mítico, transformado em parque nacional pelo regime militar, em 1972. Ruínas dos cercados de pedra de um curral de bois de séculos atrás, estabelecido por conta da excelência da pastagem, chamam a atenção do viajante. Vez ou outra um tamanduá, um gavião ou um escorpião aparecem como provas ambulantes de um passado e uma natureza que teimam em permanecer. Ali é sertão das Gerais.

O parque, criado antes da onda ecológica para preservar as nascentes do rio da “integração nacional”, ocupa o centro de uma vasta região pecuária que se derrama pelas encostas da serra, onde se produz aquele que é considerado o melhor queijo do Brasil: o “canastra”. O canastra é a “nata” do queijo brasileiro. E a “nata” do canastra é o Canastra Real.

Estima-se que a produção rural de queijos brasileiros envolva 359 mil produtores, que produzem 202 mil toneladas, sendo que 72 mil deles estão em Minas Gerais. Cerca de 88% são pequenos produtores, como o sr. José Mario, produzindo a partir de cerca de 50 litros de leite por dia.

Modo de Vida

Como todo queijo de leite cru, o canastra nasce do artesanato agroalimentar e é a materialização de um modo de vida. Ele absorve, 365 dias por ano, o trabalho do proprietário e sua família. Sem o queijo, o leite é vendido a preço vil para os grandes laticínios, os filhos mudam para a cidade, a família se desestrutura. O queijo industrial deixa atrás de si a morte da pequena propriedade agropastoril.

“Não tenho precisão de nada além de açúcar e sal”, diz José Mário, um dos artesãos mais respeitados de São Roque de Minas (MG). Esguio, vestido com apuro, envergando o seu inseparável chapéu, ele pontifica no terraço de sua casa: “Desde que me tenho por gente faço queijo, nunca fiz outra coisa e nem quis”. Mas há gente que pensa em desistir.

O brasileiro come meio quilo de queijo minas por ano, sendo que no Sudeste (incluindo Minas Gerais) esse total sobe para 833 gramas. Mas esses dados do IBGE se referem a todo queijo de coalho, chamado “tipo minas”. Os verdadeiros são aqueles de algumas poucas regiões do Estado de Minas Gerais, segundo iniciativa do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que cuidou de “tombar”, no ano passado, o modo de fazê-lo no Serro, Canastra e Araxá -todas regiões de Minas Gerais. E os produtores dessas poucas e pequenas regiões lutam pela demarcação da área e pela certificação pública da qualidade e procedência do produto.

Ao leite, tirado da vaca, ainda quente, se acrescenta o coalho e o “pingo” -uma pequena porção do soro que restou do leite coalhado no dia anterior, rico em microorganismos que conferem a tipicidade do queijo de uma região ou produtor. É a herança da qualidade que se mantém através dos tempos e conserva sua identidade. Depois, a massa é prensada, colocada em formas cilíndricas e coberto com sal grosso. No dia seguinte, é desenformado e colocado em estantes de madeira para secar. Em duas ou três semanas está pronto, atingindo excelente maturação em 30 dias (meia-cura).

Insubordinação

Mas o maior inimigo do queijo feito como o Iphan descreve é o próprio Estado. Por legislação sanitária de 1952 -que possui mais de 900 artigos!-, a queijaria, onde se faz o autêntico minas é definida como instituição transitória, pois elas “só podem funcionar quando filiadas a entrepostos de laticínios registrados, nos quais será complementado o preparo do produto com sua maturação, embalagem e rotulagem”. Isso quer dizer que, quando houver nas proximidades uma usina de leite, em geral de propriedade de grandes indústrias ou cooperativas, a “queijaria” autônoma se torna um ato de insubordinação; a produção se torna ilegal.

Por isso, das 72 mil toneladas que se produzem em Minas, estima-se que cerca 60 mil são comercializadas no mercado informal. Sem o carimbo sanitário federal -o SIF- o queijo não pode ir além dos limites municipais, a menos que o governo do Estado assuma a inspeção e permita que circule em seu território, como em Minas Gerais desde o governo de Itamar Franco (1999-2002).

As autoridades do SIF simplesmente ignoram as condições especiais e exigem que a queijaria tenha uma infraestrutura que está muito longe das posses dos pequenos pecuaristas, estabelecem prazos mínimos de maturação, formas de embalagem, meios de estocagem que descaracterizam completamente a tipicidade do canastra.

Assim, a filosofia higienista das autoridades, seguindo o modelo norteamericano depois da Segunda Guerra, tem provocado estragos no mundo todo. Na França, onde a esmagadora maioria dos seus mais de 500 queijos é de leite cru, tem desenvolvido um duplo padrão: o queijo autêntico, de “terroir”, fabricado apenas para o mercado interno; o queijo de leite pasteurizado, para exportação, especialmente para os EUA.

É o proprietário da queijaria Marie Quatrehomme (62, Rue de Sèvres, Paris) quem nos diz: “A grande indústria de laticínios usa o Estado, as normas higiênicas, para se impor, monopolizar o negócio. O leite pasteurizado é interesse da grande indústria, não do pequeno produtor”.

Luciano Carvalho Machado, presidente de uma associação de produtores de queijos canastra em Medeiros (MG), produtor inclusive do Canastra Real, indaga, abismado, deste lado do Atlântico: “Se o cigarro, que faz tanto mal, pode ser comercializado legalmente com aquelas advertências, por que não colocam um selo no queijo de leite cru dizendo que possuem microorganismos que podem ser nocivos à saúde?”. E acrescenta: “Eu fui criado com queijo, meus filhos comem queijo. Veja como são crianças sadias!”. O Canastra Real é um filigrana dessa história.

Além de Luciano, em Medeiros, só João Leite, em São Roque de Minas, faz este tipo de queijo. Os dois mantêm a tradição de um produto feito desde o século 18 para presentear pessoas gradas: no passado, autoridades; hoje, banqueiros e “gourmands”. Em cada grau de maturação (entre 30 e 240 dias), o queijo apresenta diferentes qualidades sensoriais: sabor, aroma, textura. A partir de uma produção, portanto, o tempo, a temperatura e umidade criam novos e variados queijos.

Séculos são necessários para se criar um queijo típico e o Brasil é pobre em queijos originais. Mas, cronista e observador arguto, o naturalista Auguste SaintHilaire, que viajou pelas encostas da Serra da Canastra, já registrava esse queijo e seu alto conceito, inclusive na corte. Acondicionado em burracas, no lombo de burros, atravessavam pacificamente o sertão mineiro e desciam para o Rio de Janeiro em longas viagens ao largo das quais “amadurecia”.

Exceção

Em maio, o presidente Lula editou um decreto visando estimular os acordos entre municípios e Estados, com o objetivo de criar uma rede nacional de entidades fiscalizadoras que permitiriam a livre circulação dos produtos da agroindústria artesanal. A norma mostra que o governo federal sente que aí há um problema a resolver. Mas as entidades de produtores reivindicam mais do que isso; por exemplo, que o Ministério do Desenvolvimento Agrário assuma a tutela dos pequenos produtores.

Um estatuto especial, uma norma de exceção, seria a saída para um produto que é, ele mesmo, uma exceção ameaçada de morte. No mundo todo, após a globalização, os pequenos produtores rurais lutam -e muitos conseguem- o reconhecimento da particularidade de suas obras, gozando de proteção pública. Só assim são capazes de competir nos novos mercados sem serem massacrados pelo grande capital.

Azeites, vinhos, geleias, sal, queijos, deixaram de ser coisas uniformes para serem multifacetadas e apreciadas em suas qualidades diversas. Essa é a luta do queijo canastra -especialmente a do Canastra Real; uma luta ao mesmo tempo universal e local, para a qual os brasileiros precisam estar atentos.

Texto foi publicado originalmente no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, em 08 de agosto de 2010.

https://media.sertaobras.org.br/doria_ilustrissima.pdf