Por Carlos Dória

Para nós, o alimento é um bem público. O seu conceito é uma conquista social, materializada em cada coisa que o indivíduo come, refletindo assim um determinado contexto sócio-cultural. Povos diferentes comem coisas diferentes, e mesmo possuem diferentes concepções sobre esse bem: a saúde, o bem estar, o sabor, são histórica e culturalmente determinados.

Quando o Governo Federal faz, como agora, uma chamada pública para que se opine sobre as modificações que pretende incluir no Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (RIIPOA), está evidente que reconhece aspectos obsoletos na sua legislação. Aliás, não é de hoje que produtores, pesquisadores acadêmicos, comerciantes e consumidores percebem este anacronismo.

Talvez as discrepâncias todas com a vida real se devam ao fato de que o poder público de aferra ao papel de vigiar e punir sem se dar conta de que esta função só será socialmente útil se acompanhada do propósito de apoiar e participar dos esforços de transformação positiva da realidade presente.

Uma economia tradicional, pobre, relegada ao abandono das políticas públicas, não pode mesmo estar em consonância com as exigências que o Estado formula tendo sempre em mente o grande capital, as grandes plantas industriais e as tecnologias de ponta.

Mas o governo, equivocadamente, pensa na produção tradicional como transitória, e aposta na sua erradicação. É o que se nota no artigo 25 do RIISPOA, em processo de consulta pública, ao definir a unidade de produção do queijo artesanal:

Art. 25,V – “queijaria é o estabelecimento situado em fazenda leiteira e destinado à fabricação de queijo Minas, devidamente relacionado no Serviço de Inspeção Federal e filiado a Entrepostos de laticínios registrados no SIF, nos quais será complementado o preparo do produto com sua maturação, embalagem e rotulagem, e só podem funcionar sob relacionamento no SIF para manipulação de leite da própria fazenda e quando essa matéria-prima não possa ser enviada para postos de refrigeração, usina de beneficiamento e fábrica de produtos lácteos”.

Os grifos são nossos e objetivam mostrar como o governo ainda pretende que as queijarias artesanais venham a desaparecer na medida em que a grande indústria de laticínios se expanda e transforme o pequeno produtor em fornecedor jungido de matéria-prima (leite).

Trata-se evidentemente de um abuso do poder de Estado, colocando-se este a reboque dos interesses da grande indústria, ao definir a queijaria como uma instituição transitória, cujo direito a existir cessa quando se instale, nas suas imediações, uma indústria de laticínios.

Na verdade todos os equívocos do atual RIISPOA que nos interessam aqui, decorrem dessa definição de “queijaria”. Acontece que ela está na contramão da história. Enquanto os países europeus se dedicaram a melhor conhecer e normatizar a produção agroalimentar artesanal, favorecendo o seu desenvolvimento e fortalecimento, com notáveis avanços e benefícios sociais, o governo brasileiro persiste no propósito de erradicá-la com o tempo.

Por isso mesmo – por abandonar a queijaria à sua própria sorte, por não reconhecer no queijo artesanal um produto moderno – deixa o Estado de acompanhar os avanços científicos no conhecimento do produto artesanal lácteo, produzido com leite cru, buscando de toda forma cerceá-lo, inclusive através da sua própria ignorância e desatualização, já que confere a ela força de lei.

É necessário que se faça ecoar pela sociedade civil, nos vários escalões do governo, a consciência desse anacronismo e a urgência de superá-lo. Só assim se vencerá o paradoxo de, ao mesmo tempo, se declarar o modo de fazer o queijo minas artesanal um “patrimônio nacional” imaterial e, por outro lado, buscar suprimir a sua instituição produtora.

Por isso a Sertãobras defende a necessidade de se definir um estatuto especial para a produção agroalimentar artesanal, que não seja subsumida a normas impossíveis para ela, como boa parte do que se enuncia no RIISPOA em consulta pública.